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Caio Carrara

Desenvolvedor de software do Brasil

Possui mais de uma década de experiência em engenharia de software. Usuário, apoiador e criador de software livre. Tem um olhar social para a tecnologia.

Pensamentos sobre o mundo do trabalho, salário e a doutrinação da mentira

social

A ideia de realização da vida através da nossa força de trabalho nos é posta desde muito cedo. O que ninguém nos fala, e parece que ninguém se importa, é que a realidade material simplesmente não permite a realização desse ideal. Desse descompasso, nasce muito de nossos problemas. Ultimamente, parece que a sociedade caminha para a criação de novos problemas mais profudos.


A ideologia da realização da vida através do trabalho assalariado

Recentemente, venho refletindo sobre a ideologia do emprego, aquela que começa a ser plantada em nós desde a infância, com a pergunta "o que você quer ser quando crescer?". Esse questionamento, aparentemente simples, carrega a profunda ideia de que existe apenas uma forma de nos emanciparmos como indivíduos, e que essa forma está intrinsecamente ligada a uma profissão — não qualquer uma, mas uma que garanta remuneração, preferencialmente quanto mais, melhor.

A gente cresce e os mecanismos dessa ideologia se expandem. Não basta ter escolhido a "profissão correta". Ela precisa proporcionar sustento financeiro. E não um sustento qualquer, mas um que permita manter uma família com casa, carro e, quem sabe, uma viagem por ano. Tradicionalmente, essa família era idealizada como um homem, uma mulher e filhos, mas hoje um ou dois herdeiros já são considerados suficientes, dada a dificuldade de alcançar condições materiais para mais.

O grande descompasso entre o ideal e o real

Enquanto essa é a ideologia hegemônica para boa parte da população (ao menos para os nascidos até o início do século atual), a realidade impõe condições opostas à concretização desse ideal. No segundo trimestre de 2025, o salário médio dos trabalhadores brasileiros foi de R$ 3.477 segundo dados da PNAD Contínua. No mesmo período, o salário mínimo necessário, calculado pelo DIEESE, seria de R$ 7.416. É interessante notar que a metodologia do DIEESE se baseia no custo de alimentação para considerar o mínimo que o trabalhador precisa para sobreviver. Considerando também habitação, vestuário, transporte, etc.

Embora o objetivo aqui não seja fazer uma análise extensa da questão distributiva brasileira, esses dados são emblemáticos da situação material real das pessoas que trabalham para viver. Eles evidenciam um grande descompasso entre a ideologia ostensivamente propagada e a realidade do mercado de trabalho.

Em maior ou menor grau, é perceptível esse mesmo desalinhamento do ideal com o real. As crises ao redor do mundo são sintomas dessa realidade incapaz de proporcionar as condições de vidas materiais para as pessoas que só possuem sua força de trabalho como mercadoria. Ainda que houvesse a maior força redistributiva já vista na história da humanidade, a natureza não possuiria recursos suficientes para prover o padrão de consumo médio vendido (e idealizado) para as pessoas. Diversos indícios já apontam para isso. Como um recente cálculo mostrou, em 2022 o Brasil já consumia mais recursos naturais do que a natureza é capaz de produzir em um ano. Por isso facilmente concluo que somos doutrinados a partir de uma mentira.

O setor de tecnologia é o último refúgio do trabalhador

Um setor da economia ainda sobrevive capaz de promover as condições necessárias para a materialização dessa ideologia da realização da vida através da força de trabalho: o setor de tecnologia. Este, talvez, seja o último segmento em nossa sociedade que emprega e paga salários que condizem com a realização material da vida de um indivíduo ou de uma família. Embora essa constatação seja frequentemente divulgada como um aspecto positivo (e de certa forma é), o fato de apenas um setor ser capaz de produzir as condições materiais de vida necessárias é extremamente preocupante.

É claro que existem exemplos específicos de trabalhadores em outras profissões com salários dignos. No entanto, o que se observa são as condições sistemáticas e estruturais do setor de tecnologia que concretizam essa característica de forma abrangente.

Minha percepção sobre o mercado de trabalho e os salários na área de tecnologia vem tanto de pesquisas quanto por também estar inserido nesse mercado. De acordo com a última pesquisa da Robert Half, o salário de um desenvolvedor em início de carreira gira em torno de R$ 5.000. Embora em casos específicos encontrem-se valores menores, deve-se considerar que 1) trata-se de um salário de início de carreira, quanto o indivíduo geralmente possui menos gastos e responsabilidades e 2) ainda assim, trata-se de um salário acima da média nacional.

Um aspecto a ser destacado é a expansão de profissões ligadas à tecnologia que conseguem oferecer salários dignos. O formato atual das mídias sociais, por exemplo, deu origem a funções como gestores de tráfego pago, consultores de marketing digital e microinfluenciadores. Essas profissões, além de terem nascido no ambiente digital em termos técnicos, também se "modernizam" nas relações de trabalho, sendo rotineiramente formalizadas pela popularmente conhecida "pejotização". Nesses casos, a relação de trabalho é intermediada por um contrato de prestação de serviços, e não um contrato de trabalho, ainda que, na prática, funcione como tal. Terreno fértil para precarização, super exploração e queda na qualidade de vida ao longo do tempo.

Indo pelo caminho contrário

Essa realidade não é exclusiva do Brasil. Muito pelo contrário. Considerando que uma parte significativa dos gastos em tecnologia está relacionada a pessoas, não surpreende o atual fascínio pela inteligência artificial generativa. Além da minha descrença prática, misturada com frustração, em relação à IA, o que me preocupa é o que está por vir. Se diversas profissões deixarem de existir, teremos um problema gigantesco no futuro. O que mais me tira o sono é que, mesmo com muitas profissões ainda existindo, já enfrentamos um problema social imenso, e os caminhos atuais não parecem levar ao enfrentamento dessas questões.

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