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Caio Carrara

Desenvolvedor de software do Brasil

Possui mais de uma década de experiência em engenharia de software. Usuário, apoiador e criador de software livre. Tem um olhar social para a tecnologia.

O ECA Digital, PL 2628/2022, não ataca os problemas fundamentais da adultização

social tech

O projeto de lei 2628/2022, recém-aprovado pelas casas legislativas, se apresenta como um relevante marco na tentativa de proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Em andamento no parlamento desde 2022, o projeto teve sua aprovação acelerada após as denúncias acerca da adultização de crianças no Instagram. O argumento de legisladores e entidades da sociedade civil é de que o projeto se torna ainda mais importante como forma de resposta aos problemas levantados na denúncia da exposição predatória de menores. Entretanto, como veremos, o projeto de lei não ataca, ou ataca de forma tangencial e pouco efetiva, a adultização de crianças e adolescentes em redes sociais e aplicativos digitais.


Sobre o mérito da proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais

Antes de qualquer análise, é importante salientar a importância e relevância da proteção de crianças e adolescentes em todos os âmbitos da sociedade. Inclusive no ambiente digital. Assim como é fundamental preservar a saúde de todas as pessoas envolvidas em ambientes digitais, independente da idade. Profissionais de psicologia vêm cada vez mais alertando sobre os riscos para a saúde mental que o uso excessivo de redes sociais pode causar. Portanto, é importante reconhecer que a sociedade organizada em favor da melhoria do ambiente digital, para todas as pessoas, é salutar. A abordagem para encarar esse problema dos nossos tempos deve ser ampla, multidisciplinar, pautada pelo equilíbrio e pela identificação dos fatores fundamentais causadores da insalubridade digital.

A toxicidade dos ambientes digitais é um problema multifatorial. Envolve desde o desenho e a arquitetura de aplicativos digitais, passando pelos fatores econômicos e de governança e chegando a aspectos sociais, culturais e educacionais da população. Trata-se de um desafio estruturalmente complexo para toda a sociedade. Encarar esse tipo de desafio a partir de pânico moral tende a gerar resultados contraproducentes na melhor hipótese. E resultados deletérios na pior hipótese.

Antes de analisarmos o projeto de lei 2628/2022, é importante se ter clareza sobre o que foi denunciado como adultização de crianças e adolescentes. Bem como quais os fatores originários desse problema.

Os problemas fundamentais da exploração de crianças e adolescentes nas redes

No vídeo do influenciador digital que realizou a denúncia, diversos casos concretos de exposição e exploração de menores foram apresentados. Entre as situações de adultização documentadas, podemos identificar de forma geral uma estrutura comportamental, bem como elencar os atores envolvidos da seguinte forma:

Dessa estrutura, pode-se categorizar o núcleo produtor de conteúdo, o núcleo consumidor de conteúdo e o núcleo de compartilhamento de conteúdo de exploração infantil. O combustível que alimenta a atuação e interação entre esses atores é a forma de operação dos negócios das mídias digitais.

Atualmente, o negócio das mídias sociais centralizadas se baseia fundamentalmente na venda de publicidade. Não obstante, o diferencial das redes online para os demais canais de propaganda reside no fato da hiper segregação de audiência. Assim, para o anunciante, acaba sendo um canal de divulgação altamente assertivo e geralmente com retorno de investimento mais economicamente atrativo.

Considerando esse modelo econômico, são fatores preponderantes para as big techs de mídias sociais o acúmulo do máximo de dados e informações sobre seus usuários, bem como o aumento constante de usuários e tempo de tela. Sendo tempo de tela a medida de tempo que os usuários de fato passam utilizando o aplicativo e expostos à exibição de conteúdos publicitários. Assim sendo, é financeiramente vantajoso para as empresas que sua massa de usuários passe mais tempo no aplicativo, gerando e compartilhando o máximo de dados possíveis. Disso surgem mecanismos de incentivo sistemáticos que promovem esses comportamentos. Incentivos que podem ser velados ou explícitos.

Como forma de incentivo explícito para o aumento do uso das redes socais, está a "monetização". A capacidade de geração de retorno financeiro para o produtor de conteúdo. Uma relação cujo modelo se assemelha em muito a uma relação trabalhista: trabalhadores vendem seu tempo de trabalho para a produção de conteúdos cada vez mais interessantes, que serão explorados pelo seu empregador (a big tech social), para fins de obtenção de lucro. A monetização pode ser por via direta entre big tech e produtor, como em vídeos do YouTube, ou por via indireta. Quando empresas terceiras contratam produtores de conteúdo para a vinculação de publicidade em seus conteúdos.

Veladamente, o incentivo para o aumento de engajamento nas redes sociais reside na necessidade de o produtor de conteúdo necessariamente gerar novas postagens em espaços cada vez mais curtos de tempo que sejam cada vez mais impactantes para a audiência. A base para essa regra velada está no fato de que, um público que não é impactado cada vez mais, e cada vez de forma mais enfática, tende a não manter o comportamento de uso das redes sociais. De forma prática, no caso da exploração infantil para conteúdos eróticos e pseudo-eróticos, o conteúdo do que é produzido e compartilhado precisa necessariamente ser cada vez mais explícito, abordando situações cada vez mais inapropriadas para as crianças.

Quando se juntam essas duas formas de incentivo, monetização e produção constante e impactante, com uma audiência que busca esse tipo de conteúdo, empresas como Meta (Facebook, Instagram), Alphabet (Google, YouTube) e TikTok veem seus lucros aumentarem e seus poderes políticos crescerem. Dessa forma, fecha-se um ciclo fundamentalmente amoral e potencialmente imoral cujos incentivos e recompensas satisfazem economicamente todos os seus agentes. Infelizmente, às custas da exploração de menores e outros fatores prejudiciais à sociedade amplamente.

Nesse contexto complexo, envolvendo elementos de moralidade, situação social, cultura, educação, tecnologia, entre outros, é que surge o vídeo denúncia sobre a exploração de menores para produção e compartilhamento de conteúdo erotizado. Dado o viés moral intrinsecamente relacionado ao tema, o legislativo brasileiro e autoridades foram incitados a dar uma resposta. Oportunamente, aceleraram os trabalhos e a tramitação do projeto de lei 2628 de 2022 do senador Alexandre Vieira.

O projeto de lei 2628/2022, ECA Digital

O projeto de lei surge no final de 2022 e tem seu debate desenvolvido desde então. É importante ressaltar que, embora a exploração de menores para produção de conteúdos digitais não seja um tema novo, na origem do projeto de lei, esse não era o foco principal. Não obstante, na forma com que o projeto sai do Senado para a sanção da presidência da república, a exploração de conteúdo infantil por adultos continua não sendo o foco do texto legislativo. É suficientemente claro que o objetivo do projeto de lei está em salvaguardar o acesso das próprias crianças aos conteúdos nocivos ou inapropriados a elas.

Alguns capítulos do projeto de lei exemplificam esse objetivo claro e principal do projeto, por exemplo:

Apesar de não ser o foco desse artigo, ao analisar os detalhes do projeto de lei no que se refere à identificação e proteção de menores, é possível identificar potenciais claros de violação da privacidade em massa de todos os usuários. Independente de idade. Preocupações e riscos com a segurança de dados privados sensíveis, riscos à soberania digital nacional e o comprometimento do ambiente de concorrência comercial também são passíveis de serem elencados. A abrangência de diversas categorizações de produtos, serviços e fornecedores pode originar várias distorções no ecossistema digital brasileiro, colocando em risco o cumprimento efetivo da própria lei na totalidade.

Dos dezesseis capítulos do projeto, somente 2 cobrem tangencialmente a questão da exploração dos menores em conteúdos impróprios:

O conjunto dos artigos dos dois capítulos acima estabelece que os fornecedores de produtos ou serviços acessíveis por crianças deverão informar autoridades responsáveis, bem como remover conteúdo, quando identificarem conteúdos violadores graves dos direitos das crianças e adolescentes. Para a remoção do conteúdo, os fornecedores deverão ser comunicados pelo Ministério Público, entidades representativas de defesa dos direitos de crianças e de adolescentes ou pela própria vítima. Trata-se de mecanismos relativamente inócuos, reativos e que não vão ao encontro dos problemas fundamentais da exploração infantojuvenil por adultos em redes socais.

São medidas inócuas e reativas no sentido de que sugerem uma tentativa de remediar o ocorrido após a identificação de exploração. Ao invés de focar nos incentivos e recompensas que alimentam a produção desse tipo de conteúdo. Como alertado no vídeo de denúncia da adultização, os agentes maliciosos envolvidos nos esquemas de produção, armazenamento e compartilhamento de conteúdos nocivos atuam por meio de códigos. Utilizam subterfúgios de comunicação para driblar mecanismos de controle automatizados. Desse modo, o projeto de lei deixa em aberto a possibilidade de adultos compartilharem conteúdos menos explícitos nas redes, de maneira a atrair público interessado e, mediante codificação, manter a rede de compartilhamento externa à rede social. A exploração infantil, a adultização, continuará a ocorrer.

Também por serem medidas e obrigações reativas, ainda deixa aberta a possibilidade de compartilhamento e armazenamento além das fronteiras das redes sociais de conteúdo de menores. Afinal, arriscando soar repetitivo, o projeto de lei não se propõe a atacar a origem do problema. Além disso, por deixar suficientemente vaga a categorização de conteúdos que violem os direitos de criança e adolescentes, deixa a cargo de eventual regulamentação a efetividade dessas medidas. Regulação que, assim como esse projeto de lei, sofrerá enormemente influência das próprias empresas de mídias sociais que tendem a flexibilizar medidas para fins econômicos. Assim como aconteceu com o ataque da neutralidade da rede prevista no Marco Civil da Internet, mas que, na prática, não é respeitado. Inclusive, é um dos fatores incentivadores de consumo prejudicial das redes sociais.

Considerando que, em vários casos, como apresentados na denúncia da adultização, os pais e responsáveis são os autores e coniventes da exploração, se faz necessária uma análise e atuação mais abrangente da sociedade organizada e dos poderes institucionais. É de fundamental importância tratar do assunto da exploração infantil, bem como da utilização sadia dos meios digitais, de forma séria e ampla, com a profundidade que o tema exige. Aspectos econômicos e sociais, de educação, organização familiar, educação e instrução, alfabetização digital e acesso à saúde física e mental são exemplos de objetos de ação que precisam ser desenvolvidos efetivamente na sociedade. O fortalecimento das instituições e autoridades já existentes, bem como o acesso da população à orientação dessas entidades e aos agentes fiscalizadores também.

As mídias sociais centralizadas possuem mecanismos de notificação de conteúdo imprório, existem regulações que protegem crianças e adolescentes na sociedade, já existe algum incentivo comercial para se manter o ambiente digital sadio. Entretanto, ainda assim casos de abusos e exploração são facilmente idenficados. Sem muito esforço, agentes maliciosos tem campo aberto para suas atividades ilicitas. A produção de conteúdo de abuso se origina a partir de situações sociais reais, não digitais. Como sociedade, deveríamos nos atentar em atacar e resolver os problemas reais que acarretam tais situações, ao invés de delegar para inócuas regulações tecnológicas facilmente contornáveis por quem deseja cometer crimes.

Conclusão

Embora o PL 2628/2022 represente um avanço simbólico ao reconhecer a necessidade de proteger crianças e adolescentes no ambiente digital, suas disposições permanecem limitadas a medidas reativas e superficiais que pouco atacam as raízes estruturais da adultização e da exploração infantil nas redes sociais por adultos. Ao focar essencialmente na restrição de acesso e na supervisão parental, o projeto ignora os incentivos inerentes e a lógica das redes sociais – a monetização, o algoritmo de engajamento e a lógica de coleta massiva de dados – que alimentam o ciclo de produção e disseminação de conteúdos e hábitos nocivos. Sem intervenções que desestimulem esses impulsionadores sistêmicos, a legislação pode se tornar somente mais um “papel-de-parede” regulatório. Portanto, para que a proteção digital de menores seja efetiva, é imprescindível complementar o PL 2628/2022 com políticas públicas integradas, educação digital abrangente, fiscalização rigorosa e, sobretudo, uma revisão crítica dos modelos de negócio das plataformas que privilegiam o tempo de tela acima do bem‑estar das crianças. Só assim será possível transformar a promessa de segurança em realidade concreta e sustentável.

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