A luta pela privacidade estará perdida somente enquanto acharem que ela está perdida
Os recentes avanços ao redor do mundo, incluindo no Brasil, de projetos para suposta proteção de crianças e adolescentes online, mostram como o ataque ao direito à privacidade é constante. Além disso, com a devida perspectiva histórica, consegue-se notar que a linha do que é ou não aceitável se movimenta ao longo do tempo. Porém, a luta pela privacidade, no mundo digital e no mundo real, continua. Especialmente no mundo digital, essa luta só acaba enquanto todos acharem que ela está acabada.
Muitos dizem que a história não se repete, mas frequentemente rima. Ao analisar a história dos ataques à privacidade online e as tentativas de vigilância em massa, as rimas são muitas. Incrivelmente, parece que aprendemos pouco com a história. Por isso, é necessária a lembrança constante de como chegamos até aqui. A história está rimando nesse exato momento.
O chip espião da década de 90
No começo da década de 90, a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA), desenvolveu o Clipper chip. Tratava-se de um chipset desenvolvido e promovido pela agência com a capacidade de proteger "mensagens de voz e dados". Entretanto, esse chip continha um mecanismo (backdoor) embutido que "permitia autoridades federais, estaduais e locais, para aplicar a lei, decodificar interceptações de transmissões de voz e dados". O governo norte-americano justificava o projeto como uma ferramenta de promoção da segurança nacional. Argumentavam que, como "terroristas" iriam ter que usar o chip para se comunicar, as autoridades conseguiriam ouvir suas chamadas. Claro, o projeto teve diversos apoiadores, além do próprio governo. Afinal, quem não quer lutar contra terroristas, não é mesmo?
Propostas de vigilância em massa geralmente possuem duas características. A primeira, e mais clara, é a de propor lutar contra um inimigo claro: terrorismo, tráfico de drogas, abuso infantil, etc. As propostas dizem então que as medidas de vigilância irão focar somente nesses potenciais abusos e crimes. A segunda, e menos clara, característica das medidas de vigilância em massa é que ela parte da pressuposta boa intenção do vigilante. Que esse vigilante será desumanamente isento e assim o permanecerá para todo sempre. E claro, quem vigia o vigilante?
O famigerado Clipper chip teve uma vida curta. O projeto foi encerrado por volta de 1996. Não sem luta, batalhas e pela força da sociedade organizada. À época, organizações como a Electronic Privacy Information Center (EPIC) e a Electronic Frontier Foundation (EFF) bravamente lutaram contra o Clipper chip. Além das razões técnicas a respeito da eficácia criptográfica do chip, um dos argumentos mais fortes era o de tratar todas as pessoas como criminosas antecipadamente. Ambas organizações existem até hoje, sendo ativas no movimento em defesa da privacidade e segurança digital.
O caso do Clipper chip pode ser considerado um dos primórdios das chamadas Crypto Wars. São diversas batalhas ao longo da história recente em favor de soluções que respeitem o direito à segurança e à privacidade individual nos ambientes digitais.
A atual proposta de vigilância em massa na europa
Como dito anteriormente, a história rima. E rima muito bem. Quase 30 anos após o Clipper chip nos Estados Unidos, agora, em 2025, está em efervescente discussão na União Europeia a regulação chamada Chat Control. Trata-se de uma medida legislativa, na onda recente de proteção às crianças e aos adolescentes, que pretende possibilitar a vigilância de todas as mensagens privadas trocadas por cidadãos europeus. Incluindo mensagens encriptadas e fotos trocadas entre as pessoas. O Chat Control vem no embalo do início da vigência do Online Safe Act (OSA) no Reino Unido nesse ano. Atualmente, o projeto encontra-se no parlamento e tem sido debatido. Dos membros, 6 se opõem, 15 apoiam e 6 membros continuam indecisos. A disputa está acirrada.
Assim como no século passado, a sociedade organizada está lutando na tentativa de preservar direitos fundamentais. Mais uma vez, a guerreira entidade EFF está em campo contra o Chat Control. Justificando, argumentando e lutando. Além disso, também há a iniciativa liderada pela sociedade civil organizada na forma do projeto Fight Chat Control. A luta continua!
A luta pela privacidade e segurança digital é contínua
Diferentemente de tantos outros casos no mundo real, como as mudanças climáticas, o desenvolvimento de mecanismos espiões (backdoors) e a coleta de dados digitais são eventualmente reversíveis. Os dados coletados ao longo da história de acumulação primitiva estão armazenados em bases de dados. Essas bases são compostas por hardware e software. São sequências de bits que podem ser apagadas ou embaralhadas. Isso deveria nos fazer pensar que a luta pela privacidade e segurança digital só está perdida enquanto conseguirem convencer que ela está perdida.
Embora seja possível, reverter medidas de abuso e exploração de dados privados são muito difíceis. Ainda mais com a força de uma regulação ou regulamentação. Por isso, a luta antes e durante os processos legislativos e regulatórios são tão importantes. A melhor forma de combater a vigilância em massa é evitar que ela comece, ao invés de interromper uma vigilância em andamento. Em especial, porque os diversos ataques à privacidade digital tendem a criar uma cultura de desvalorização desse direito, ou ainda a compreensão individualista e socialmente deletéria de que "se não devo, não tenho nada a esconder".
Assim sendo, a história demonstra que a batalha pela privacidade nunca termina. Ela apenas muda de forma. Do Clipper chip nos anos 90 a propostas legislativas como o Chat Control hoje. Cada tentativa de vigilância massiva nasce sob a bandeira de proteger a sociedade, mas sempre carrega a perigosa suposição de que o vigilante será infalível, ignorando que quem controla o poder precisa ser controlado. As lições dos movimentos que derrubaram o Clipper chip, das organizações como a EFF e EPIC, e das atuais mobilizações contra a regulação invasiva nos EUA, Europa e Brasil mostram que a resistência organizada pode virar o jogo. Enquanto houver consciência de que a privacidade está em risco e vontade coletiva para defendê-la, a luta permanece viva; ela só se perde quando acreditamos que já está perdida.