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Caio Carrara

Desenvolvedor de software do Brasil

Possui mais de uma década de experiência em engenharia de software. Usuário, apoiador e criador de software livre. Tem um olhar social para a tecnologia.

A luta pela privacidade estará perdida somente enquanto acharem que ela está perdida

social tech privacy

Os recentes avanços ao redor do mundo, incluindo no Brasil, de projetos para suposta proteção de crianças e adolescentes online, mostram como o ataque ao direito à privacidade é constante. Além disso, com a devida perspectiva histórica, consegue-se notar que a linha do que é ou não aceitável se movimenta ao longo do tempo. Porém, a luta pela privacidade, no mundo digital e no mundo real, continua. Especialmente no mundo digital, essa luta só acaba enquanto todos acharem que ela está acabada.


Muitos dizem que a história não se repete, mas frequentemente rima. Ao analisar a história dos ataques à privacidade online e as tentativas de vigilância em massa, as rimas são muitas. Incrivelmente, parece que aprendemos pouco com a história. Por isso, é necessária a lembrança constante de como chegamos até aqui. A história está rimando nesse exato momento.

O chip espião da década de 90

No começo da década de 90, a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA), desenvolveu o Clipper chip. Tratava-se de um chipset desenvolvido e promovido pela agência com a capacidade de proteger "mensagens de voz e dados". Entretanto, esse chip continha um mecanismo (backdoor) embutido que "permitia autoridades federais, estaduais e locais, para aplicar a lei, decodificar interceptações de transmissões de voz e dados". O governo norte-americano justificava o projeto como uma ferramenta de promoção da segurança nacional. Argumentavam que, como "terroristas" iriam ter que usar o chip para se comunicar, as autoridades conseguiriam ouvir suas chamadas. Claro, o projeto teve diversos apoiadores, além do próprio governo. Afinal, quem não quer lutar contra terroristas, não é mesmo?

Propostas de vigilância em massa geralmente possuem duas características. A primeira, e mais clara, é a de propor lutar contra um inimigo claro: terrorismo, tráfico de drogas, abuso infantil, etc. As propostas dizem então que as medidas de vigilância irão focar somente nesses potenciais abusos e crimes. A segunda, e menos clara, característica das medidas de vigilância em massa é que ela parte da pressuposta boa intenção do vigilante. Que esse vigilante será desumanamente isento e assim o permanecerá para todo sempre. E claro, quem vigia o vigilante?

O famigerado Clipper chip teve uma vida curta. O projeto foi encerrado por volta de 1996. Não sem luta, batalhas e pela força da sociedade organizada. À época, organizações como a Electronic Privacy Information Center (EPIC) e a Electronic Frontier Foundation (EFF) bravamente lutaram contra o Clipper chip. Além das razões técnicas a respeito da eficácia criptográfica do chip, um dos argumentos mais fortes era o de tratar todas as pessoas como criminosas antecipadamente. Ambas organizações existem até hoje, sendo ativas no movimento em defesa da privacidade e segurança digital.

O caso do Clipper chip pode ser considerado um dos primórdios das chamadas Crypto Wars. São diversas batalhas ao longo da história recente em favor de soluções que respeitem o direito à segurança e à privacidade individual nos ambientes digitais.

A atual proposta de vigilância em massa na europa

Como dito anteriormente, a história rima. E rima muito bem. Quase 30 anos após o Clipper chip nos Estados Unidos, agora, em 2025, está em efervescente discussão na União Europeia a regulação chamada Chat Control. Trata-se de uma medida legislativa, na onda recente de proteção às crianças e aos adolescentes, que pretende possibilitar a vigilância de todas as mensagens privadas trocadas por cidadãos europeus. Incluindo mensagens encriptadas e fotos trocadas entre as pessoas. O Chat Control vem no embalo do início da vigência do Online Safe Act (OSA) no Reino Unido nesse ano. Atualmente, o projeto encontra-se no parlamento e tem sido debatido. Dos membros, 6 se opõem, 15 apoiam e 6 membros continuam indecisos. A disputa está acirrada.

Assim como no século passado, a sociedade organizada está lutando na tentativa de preservar direitos fundamentais. Mais uma vez, a guerreira entidade EFF está em campo contra o Chat Control. Justificando, argumentando e lutando. Além disso, também há a iniciativa liderada pela sociedade civil organizada na forma do projeto Fight Chat Control. A luta continua!

A luta pela privacidade e segurança digital é contínua

Diferentemente de tantos outros casos no mundo real, como as mudanças climáticas, o desenvolvimento de mecanismos espiões (backdoors) e a coleta de dados digitais são eventualmente reversíveis. Os dados coletados ao longo da história de acumulação primitiva estão armazenados em bases de dados. Essas bases são compostas por hardware e software. São sequências de bits que podem ser apagadas ou embaralhadas. Isso deveria nos fazer pensar que a luta pela privacidade e segurança digital só está perdida enquanto conseguirem convencer que ela está perdida.

Embora seja possível, reverter medidas de abuso e exploração de dados privados são muito difíceis. Ainda mais com a força de uma regulação ou regulamentação. Por isso, a luta antes e durante os processos legislativos e regulatórios são tão importantes. A melhor forma de combater a vigilância em massa é evitar que ela comece, ao invés de interromper uma vigilância em andamento. Em especial, porque os diversos ataques à privacidade digital tendem a criar uma cultura de desvalorização desse direito, ou ainda a compreensão individualista e socialmente deletéria de que "se não devo, não tenho nada a esconder".

Assim sendo, a história demonstra que a batalha pela privacidade nunca termina. Ela apenas muda de forma. Do Clipper chip nos anos 90 a propostas legislativas como o Chat Control hoje. Cada tentativa de vigilância massiva nasce sob a bandeira de proteger a sociedade, mas sempre carrega a perigosa suposição de que o vigilante será infalível, ignorando que quem controla o poder precisa ser controlado. As lições dos movimentos que derrubaram o Clipper chip, das organizações como a EFF e EPIC, e das atuais mobilizações contra a regulação invasiva nos EUA, Europa e Brasil mostram que a resistência organizada pode virar o jogo. Enquanto houver consciência de que a privacidade está em risco e vontade coletiva para defendê-la, a luta permanece viva; ela só se perde quando acreditamos que já está perdida.

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